terça-feira, 30 de outubro de 2007

O barato do gato - Revista Vida Simples (Jan/2007)



Eles não são tão fáceis de entender quanto os cães, é verdade. Mas quem aprende a conviver com esses adoráveis felinos tem companhia para a vida inteira. Por Aline Angeli

Como de costume quando escrevo em casa, não estou sozinha encarando a tela branca do Word. Cuca, minha quase siamesa, já se aboletou em meu colo; Chicó, um preguiçoso amarelo tigrado, tira sua soneca exatamente sobre minhas anotações. Somos família há quatro anos, desde que, depois de decidir incluir gatos em minha vida, fui procurá-los numa feira de adoção. Ninguém mais me faria tanta companhia assim, horas a fio, na mais doce serenidade, tecla após tecla. Sim, escrever com um gato do lado é tudo de bom: bate um branco, você faz um afago; vem uma idéia, comemora-se em conjunto; ele se esfrega em sua perna, você dá graças por alguém lhe brindar com uma desculpa para parar um pouco. Não é à toa que, mundo afora, já se tornou clássica a associação dos bichanos com escritores, artistas e intelectuais. O físico inglês Isaac Newton, por exemplo, curtia tanto seu gato, que atribui-se a ele a invenção da “cat-flap” (aquela portinhola bastante comum nos Estados Unidos e na Europa) para que o animal pudesse entrar e sair do quarto escuro, onde realizava seus experimentos, sem incomodá-lo. O escritor norteamericano Edgar Allan Poe escreveu seu famoso conto “O Gato Preto” inspirado em Catarina, sua felina de estimação, que ajudou a aquecer na cama os pés de sua esposa, enquanto esta morria de tuberculose durante um rigoroso inverno. Nem mesmo o sagrado profeta do Islã, Maomé, escapou do encanto: diz a lenda que, certa vez, quando foi chamado com urgência no exato momento em que seu gato dormia em seus braços, o autor do Alcorão teria sacado a espada e recortado a área do manto onde estava o animal – para não perturbar seu sono.

Por aqui, a coleção de fãs também vai longe. A escritora Lygia Fagundes Telles, os poetas Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar, o pintor Aldemir Martins, a psiquiatra Nise da Silveira (e vamos parando a lista por falta de espaço…), todos eles não só conviveram com pelo menos um, como dedicaram considerável parte de seu talento e obra para homenagear seus gatos. “É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba perceber”, escreveu em sua ode “Simplesmente Gatos” o jornalista e cronista Artur da Távola.

Saber perceber: está aí a chave para desfrutar do melhor do espírito felino e talvez também a origem de muito do preconceito que ronda os bichanos. “Gatos não são tão óbvios”, diz a psicóloga e veterinária Hannelore Fuchs, uma das principais especialistas em comportamento animal do país. “A linguagem não-verbal dele é totalmente diferente da do cão, com o qual a espécie humana está habituada a conviver há muito mais tempo”, explica. Gatos se expressam como... gatos, ora. Quem espera rabinho abanando, lambidas festivas, obediência e truques de adestramento certamente achará o gato a própria versão em carne e pêlos do chuchu. Por outro lado, aprenda o que significa o ronronar, aquela vibração que mais parece um chiado de motor, para cair de amores da próxima vez que um bichano reagir com esse som a um carinho seu: é o sinal máximo de contentamento do gato, prova de que ele está relaxado e se sentindo no céu com sua companhia.

Vontade própria

Ah, mas o gato nem sempre vem quando você chama. E também pode lhe dar uma arranhada se não estiver muito a fim de chamego. Verdade, verdade. Mas veja só: você se levantaria feliz de uma soneca deliciosa se o motivo não fosse lá muito bom? Já não teve vontade de mandar às favas alguém que não soube a hora de parar com uma determinada brincadeira? Então, por que exigir tamanha submissão de um bicho de estimação? Conviver com um gato exige, antes de mais nada, respeito aos limites e à individualidade, o que é um aprendizado valioso especialmente no mundo dos humanos. “Para amar os gatos, você precisa ser livre”, escreveu Nise da Silveira, a primeira psiquiatra no Brasil a apostar que a interação com um animal poderia fazer maravilhas por doentes mentais. “É muito difícil não só ser independente, como lidar com uma criatura independente”, dizia ela.

Gatos são independentes, mas também amam. Esse é um lado do seu comportamento que está sendo cada vez mais vivenciado pelo homem. Graças ao estilo de vida moderno. O número de gatos domésticos não só aumentou nos últimos anos (no Brasil agora são 13 milhões, um aumento de 20%, contra 28,8 milhões de cães, segundo os fabricantes de ração), como o tipo de interação com eles mudou. “Hoje, com casas e famílias menores, há muito mais intimidade entre o gato e seu dono, o que estimula mais laços de amizade”, diz Hannelore. Ao contrário do que diz o senso comum, gatos não “são da casa”. “Se houver uma relação de afeto entre vocês, ele pode até ficar estressado com uma mudança de endereço, porque tem medo do novo – e quem não tem? –, mas dificilmente vai tentar fugir”, diz.

De todos os tipos

A fantástica capacidade de adaptação da espécie, aliás, é outro dos motivos que vêm fazendo sua popularidade crescer. Gatos amam viver pelos telhados, mas também se dão bem com o confi namento em pequenos apartamentos; incorporaram o conforto da vida doméstica e o convívio com o homem, mas mantêm como poucos seu lado selvagem. São tão complexos que nem mesmo grandes especialistas como o veterinário suíço-americano Denis Turner, uma das maiores autoridades no assunto, se atrevem a descrever o que seria um comportamento padrão do gato. “Cada gato tem uma personalidade distinta”, diz Turner em seu livro The Domestic Cat – The Biology of its Behaviour (“O gato doméstico – a biologia de seu comportamento”, sem edição brasilera). “O gato doméstico é um tema ideal de estudos sobre individualidade e personalidade”, afirma. Quem tem mais de um em casa dificilmente discorda dessa afi rmação. Tomemos como exemplo minha dupla aqui de co-autores. Chicó é gato malandro e curioso, que sabe o que é errado mas nem por isso deixa de experimentar. Adora ficar entocado em bolsas e caixas e caça besouros com precisão. Já a Cuca é uma lady reencarnada em gata: manhosa, carinhosa e obcecada por esvaziar gavetas e brincar com fi os e cordões. Adoro observá-los e, pelo jeito com que me olham fundo nos olhos, tenho certeza de que conhecem minha alma mais do que eu. Se bobear, qualquer dia desses, ainda escrevem sua própria versão deste texto, que poderia se chamar “O barato do homem”, e muito bem começar assim: “Como de costume, não estamos sozinhos encarando a tela do Word: Aline, nossa prestativa e carinhosa humana, já se aboletou em frente ao teclado…”

Aula de gatês

MIADO: Ele não é só um simples “miau”. Pode ser feito como um murmúrio, com a boca fechada, com a boca semi-aberta, ser curto, longo ou parecer mesmo um grito e significar idéias tão diferentes quanto “Olá”, “Quero algo” ou “Deixa, vai…”. Se você começar a observar as variações de miados que seu gato emite ao longo do dia, logo, logo perceberá que os sons são levemente diferentes de acordo com a situação.

RABO: É um dos melhores termômetros de seus sentimentos e intenções. Quanto mais alto e reto, melhor o humor. Rabo abaixado entre as pernas é sinal de medo, movimentos leves podem indicar curiosidade e excitação, movimentos sinuosos demonstram impaciência e golpes vigorosos avisam que o melhor é deixar o gato em paz – especialmente se vierem acompanhados de um miado agudo.

ORELHAS: Orelhas em pé são sinal de que está tudo bem. Já orelhas achatadas e para trás podem indicar tanto medo quanto um ataque iminente.

BARRIGA: Gato jogado no chão, de barriga para cima, é convite certo para um carinho. Não resista.

RONRONAR: Sinal de contentamento, relaxamento e amizade.

ROÇAR: É um gesto de carinho, mas também a forma que o gato tem de dizer que algo é seu: seja a casa, seja o sofá ou até mesmo sua perna. Quando ele se esfrega em algo, suas glândulas imprimem ali seu cheiro, que serve de aviso para possíveis gatos invasores.

Para saber mais

Livros:

Gatos, a Emoção de Lidar, Nise da Silveira, Leo Christiano

The Domestic Cat, Dennis C. Turner, Cambridge

Por que os Gatos São Assim?, Karen Anderson, Publifolha

Gato, Manual do Proprietário, Sam Stall e David Brunner, Gente